23.3.13

A dor da liberdade | Capítulo 2.

Quatro ciclos. Cento e doze dias desde que fui capturada, desde que meus pés tocaram o chão gelado daquela cela pela primeira vez, começando a apodrecer em carne viva, desde que a magia que escondia os traços humanos, mesmo que fraca, improvisada e costurada em segredo, não poderia mais ser reativada.

Cento e doze dias. Tempo suficiente para que a proteção começasse a se dissipar, para que os primeiros sinais começassem a aparecer, e é inevitável lembrar de que, nesta fase, meus cabelos começam a ficar mais opacos, sem vida, mais humanos.

Tento me acalmar todos os dias quando acordo. Haviam mais dois ciclos e havia a esperança de que eu conseguiria sair dali, mesmo que não houvesse mais ninguém esperando por mim, mesmo que eu tivesse certeza de minha família, amorosa e faeri, já tivesse aceitado a minha morte. Não sei até que ponto isto é realmente ruim. Consigo vê-las tristes e aliviadas. Consigo sentir a falta e a liberdade. Eu era um fardo, no fim das contas.

Mas eu as sinto, dentro de mim: nas articulações que doem em noites sem lua, no pulso trêmulo que não consigo controlar, nos olhos que queimam quando penso demais. Se a magia está começando a se desfazer, não falta muito para que percebam. Ou já perceberam, e me observam como quem estuda uma criatura moribunda antes do golpe final. Não há, verdadeiramente, como eu saber.

A velha faeri não comenta. Apenas continua trazendo sopas aguadas, mudando as roupas de cama e costurando suas rendas com uma dedicação obstinada. Às vezes, me oferece uma fruta mais doce. Outras, permite que eu ande pelos corredores por alguns minutos.

Foi assim que encontrei a biblioteca.

Não era um grande salão, mas uma sala antiga, afundada na pedra, com prateleiras que chegavam até o teto e cheiravam a poeira e folhas antigas. As paredes estavam cobertas por runas apagadas, quase invisíveis, como se quisessem esconder a própria história. Não parecia ser visitada com frequência e, com o passar dos dias, fui me sentindo confortável ali. Invisível.

Por outro lado, evitar a presença dos faeris significava não ter acesso a qualquer tipo de informação. Pensei que, estando em uma biblioteca de um Grande General, como Vaelis, poderia encontrar alguma pista esquecida dentro de algum volume empoeirado. Então comecei a procurar.

Ali, mergulhei nos restos de um mundo que me negaram. Vasculhei páginas rasgadas, mapas desfalcados, diários de soldados que nunca foram lembrados. Mas quanto mais lia, menos sabia. Tudo o que existiu antes do Novo Reino era tratado como lenda. As palavras que ousavam falar sobre mestiços estavam riscadas. As ilustrações, queimadas nas bordas.

A biblioteca do castelo parecia vasta, mas, para o meu azar e tristeza, não passava de uma fachada: um cemitério de histórias com túmulos violados. E, mesmo entre as cinzas, eu vasculhava com as mãos trêmulas, o olhar atento, o corpo curvado como o de alguém que teme ser vista e teme ainda mais o que pode encontrar.

Não era apenas curiosidade: era necessidade, sobrevivência.
Eu precisava saber mais. Precisava entender o mundo antes do Grande Rei, precisava saber se havia alguma parte da história morta que ainda não conhecia. Melhor: precisava saber se haviam mais como eu, se houve um tempo em que isso não era uma sentença.

Mas tudo o que encontrei foi silêncio e fumaça.

As passagens sobre a união entre humanos e faeris tinham sido arrancadas com lâmina. Os nomes mistos haviam sumido dos registros como se nunca tivessem existido. Os contos antigos, que outrora celebravam pactos de sangue e magia compartilhada, agora eram reescritos com tons de advertência, como se o amor entre raças diferentes fosse uma ameaça ou heresia. Nada diferente do que encontrávamos nas pequenas escolas por toda a extensão do Reino.

Em um dos volumes mais antigos, descobri o que poderia ser uma referência ao tempo anterior à ascensão de Azark, o atual soberano do Novo Reino de Thalmorin — o rei sombrio das fadas, o arquiteto do silêncio. Diziam que ele foi o primeiro a queimar as pontes entre os mundos. Um faeri antigo, nascido da Noite Alta, herdeiro da linha mais pura dos Primordiais. Um fanático por ordem. Por pureza. Por controle.

Antes dele, o mundo era outro. As fronteiras eram mais porosas. Os humanos e os faeri dividiam terras e festivais. Mais do que somente faeris e humanos: haviam outros – elfos, dracos, sereianos. Houve até mesmo um período de governo conjunto, quando um conselho misto decidia as leis sob os dois sóis, com governantes representando seu próprio Reino. Um tempo de magia entrelaçada e sangue partilhado, antes que o medo se tornasse um trono e antes que Thalmorin fosse o único centro de poder.

Thalmorin, o Reino Unificado. É bonito a ascensão de Azark nas histórias que aprendemos nas escolas, e, mais ainda, nas histórias que lemos nos livros: ele foi fiel aos seus, salvou o continente ao deixá-lo puro. Com exceção do povo de Velmoura, com o qual Azark mantem relações há séculos e dos quais os habitantes não ousam pisar em terra firme, todos os outros foram extintos porque incitavam ódio, rebelião e eram uma constante perturbação da paz. 

Mas isso... era vago demais. Fragmentado demais. E quando viver é uma eterna repressão, como acontece comigo, a história parece simplesmente errada. Inadequada. 

Aos poucos, fui percebendo que tudo o que dizia respeito à harmonia tinha sido cuidadosamente apagado. Não havia nomes, apenas ecos. Não havia datas, apenas a ausência delas.

E havia a pior parte: eu não podia perguntar. Nem à velha criada, que agora me vigiava com olhos mais atentos, nem a ninguém. Eu estava sozinha nessa busca, e, por mais que quisesse gritar, queimar os livros pela frustração, destruir as prateleiras por não conterem a verdade, eu apenas continuava, noite após noite, com os olhos ardendo e as mãos manchadas de poeira, vasculhando um passado que não quer ser encontrado.

E no fundo, sabia: se não descobrisse logo... não teria tempo.

Já haviam se passado quatro ciclos. Quatro luas desde que a magia foi feita pela última vez. O tempo corria contra mim e eu sentia meu corpo já começar a denunciar aquilo que mais temi.

Até que, um dia, o vi.
Estava de pé, encostado numa estante de livros selados por cadeados mágicos. A luz azulada de uma tocha encantada projetava sua silhueta com perfeição absurda: alto, imóvel, um espectro esculpido em mármore.

Meu corpo começa a vibrar assim que me dou conta de sua presença, quase como na primeira vez que nos encontramos. É uma vibração fina, profunda, que nasce entre os ossos e se espalha como um eco abafado dentro do peito. Um aviso, talvez. Ou um lembrete de algo que nunca compreendi por completo.

Vaelis Thorneveil.

Não se moveu quando entrei, sequer pareceu surpreso, mas havia algo nos olhos dourados que se estreitou, uma fagulha de interesse que nunca imaginei ver em alguém como ele direcionado a alguém como eu. Meu coração reagiu como um animal encurralado: uma mistura de admiração desconfortável e pânico frio. Não importa quantas vezes eu o veja, ele sempre parece mais real do que deveria. Um retrato arrancado de um tempo antigo e moldado com o que o medo tem de mais belo.

— Consigo farejar seu rastro por todos os cantos da biblioteca... Perdida? — perguntou, sem deixar o tom denunciar qualquer emoção.

— Estou apenas lendo — menti. Ou quase: ler era mesmo tudo o que eu fazia há semanas.

Ele olhou para os livros em minha mão. Nenhum deles dizia coisa alguma, todos eles diziam muito. As sobrancelhas dele se levantam, um sinal pequeno que indicava surpresa. 

Me sobressalto, o medo crescendo, vibrante, por todo o meu corpo. É tão forte que temo estar realmente me tremendo, mas, quando observo os livros em meus próprios braços, os vejo inertes. 

Não há necessidade de fingir. Não quando me entreguei, como uma tola.

— São só... sombras. Da história.  digo, a voz falhando.  Gosto de estudar. 

Por um instante, pensei ter visto algo vacilar em seu semblante. Um incômodo. Ou uma lembrança.

— As sombras mentem — murmurou, quase um aviso. — Tanto quanto os vivos.

— E os vivos esquecem o que querem — murmurei de volta, antes que pudesse impedir minha língua de se mover. É quase um instinto: quando ele está, não consigo manter a personagem que criei para a velha criada. Talvez o temor não me deixe pensar, não me permita ser cuidadosa, ou, talvez, seja o fato de que, perto dele, minha mente sempre parece estar tentando acompanhar algo que não consigo nomear.

Seus olhos dourados se estreitaram como lâminas afiadas. O silêncio que se seguiu carregava peso, como se até o ar esperasse para ver o que ele faria.

Então, com uma tranquilidade aterrorizante, ele disse:

— Eu não autorizei que saísse do quarto.

Minha boca secou.

— A criada disse que...

— A criada obedece a mim. — seu tom foi cortante, mas sem elevar a voz. Uma declaração de fato. Inquestionável.

Ele deu um passo à frente. A biblioteca pareceu encolher.

— Se queria andar pelo castelo, deveria ter pedido.

A cada palavra, a distância entre nós diminuía, e o controle que eu tentava manter, escorria pelas rachaduras. Ele era como tudo o que eu já ouvira falar, até pior, como se isso fosse possível. Uma presença que preenche o espaço com peso e silêncio. E beleza. Maldição, por que ele precisava ser tão bonito?

— Eu não pensei que... fosse permitido — sussurrei.

— Não é. E, ainda assim, aqui está. Vasculhando palavras extintas e procurando o que não deveria ser encontrado.

Ele parou diante de mim, tão próximo que eu conseguia ver o reflexo de mim mesma em seus olhos: pequena, frágil, suja de poeira. Tão tola quanto me sentia. Uma invasora mal disfarçada. Uma criatura esperando o julgamento. 

Suas palavras eram tão cortantes e frias quanto as paredes do castelo. 

O Castelo de Azareth, região mais ao sul de Thalmorin, regido pelo Grande General Vaelis Thorneveilnão ostenta torres douradas nem muralhas cravejadas de pedras preciosas, como os palácios faeri ao norte. Não há música ecoando pelos salões nem jardins encantados derramando flores por sobre as escadas.

Ergue-se como uma cicatriz sobre as colinas devastadas de Azareth, no ponto exato onde o último rei humano caiu, segundo contam os livros desta mesma biblioteca, de joelhos e com a coroa partida ao meio. Dizem que foi o próprio Vaelis quem escolheu o lugar. Que, entre todos os espólios da guerra, pediu o menor e o mais longe dos castelos, por razões que ninguém ousou questionar.

— Fale a verdade agora. — Seu timbre não mudava, mas havia um peso mágico na exigência. — Quero sua palavra. Sob magia.

Congelada, demorei um instante para processar.

— Minha... palavra?

— Um pacto. De que me responderá com verdade. — aquilo faz meu sangue revirar. — Para agradecer a hospitalidade.

Meu coração martelava no peito: dar a palavra sob magia era entregar a alma por um fio. Eu não poderia mentir, nem silenciar. Era um péssimo acordo, sabendo eu quem sou e sabendo eu quem ele é. E, ainda assim, havia algo nos olhos dele que me desarmava. Ou talvez eu já estivesse desarmada há muito tempo e só agora percebia.

Além disso, o que eu poderia fazer? Negar? Recusar e vê-lo concluir o que deveria ter feito desde o início? Havia orgulho em mim, mas não burrice. Não quando se tratava de sobrevivência.

Assenti.

— Dou minha palavra — sussurrei. — Que falarei apenas a verdade.

Já havia sido atingida por magia antes: maldições, feitiços, curas, mas nada me preparou para o momento em que o elo se selou. Nada me preparou para a magia se aninhar no meu corpo como uma serpente fria. Nada me preparou para a vibração, para a sensação de formigamento, e eu soube, no mesmo instante, que não havia mais fuga. Era um selo que prendia por dentro, como mãos invisíveis em volta da alma.

Vaelis se afastou um passo, como se me estudasse.

— A floresta. O que a levou ao lado sul?

Fechei os olhos por um momento. Um raio de memória me atravessou: a correria sob a chuva, o cheiro de folhas queimadas, os efeitos da magia recém-restaurada no meu corpo que me deixavam debilitada. A dose precisava ser alta o suficiente para que a viagem valesse a pena, mas era aterrorizante toda maldita vez, por isso corria para longe.

— Eu estava... — disse, escolhendo cada palavra com extremo cuidado. — Correndo.

— Por quê?

"Estava atrasada." Tentei, mas nada saiu: a magia me cortou como um chicote, silenciando meus lábios antes que a mentira pudesse ser dita. Meus olhos se arregalaram, a garganta travou. A vergonha me envolveu como uma segunda pele.

Vaelis apenas observava. Aguardava.

— Eu... — tentei novamente, agora sem o peso da mentira. — Eu estava sendo esperada em casa. 

Era verdade. Parcial, mas ainda verdade. Senti o laço ceder em aprovação. E odiei isso. Odiei como ele parecia saber.

— Rotina ao sul da minha floresta?

Respirei fundo.

— Eu... nasci de forma errada. Onde cresci, me ter longe era uma benção, nunca tive muita supervisão. 

Vaelis pareceu considerar minhas palavras, levou um tempo pensando nelas. A face impassível, difícil de interpretar. Meu corpo todo treme quando penso que a linha para que ele descubra a verdade, a minha verdade, é tão fina que cheira a morte. 

Mas não menti. Nascer de forma errada pode significar muitas coisas, desde que ele acredite que sou faeri.

— Sua família. Onde estão?

Pensei na minha mãe. Nas minhas irmãs. Nos olhos delas me fitando da janela quando parti, sem saber se voltaria. O instinto foi mentir, dizer que estavam mortos.

E tentei, mas a palavra... não veio. Meu corpo se recusou a obedecer e magia apertou em torno do meu pescoço como mãos invisíveis.

— Estão vivas — sussurrei, derrotada. — Pelo menos, a última vez que as vi.

Não ousei olhar para ele. Senti minha pele arder de vergonha pro mais uma tentativa de mentira que, eu tinha certeza, ele sabia. Havia também um calor que subia do peito ao rosto como se queimasse meu orgulho.

— Onde?

— Em um povoado na fronteira entre as florestas de Azareth e Drakveryn. Não sei o nome. Não sei se ainda estão lá. Nunca soube se era verdade ou invenção, se estávamos mesmo num mapa ou apenas escondidos do mundo.

Ele não comentou. Nenhuma palavra de julgamento. Nenhuma resposta. Apenas o silêncio incômodo de alguém que sabe mais do que diz.

— E as asas? — perguntou, por fim.

Meu corpo inteiro se retesou.
Como ele sabia?
Poderia saber?

— Por que não as mostra?

Demorei a responder, calculando as palavras.

— Foram quebradas quando criança. — minha voz mal saía. Ele não precisava saber da abominação que saiu das minhas costas, não precisava saber da expressão de choque no rosto de cada pessoa que as viu, não precisava saber da maldição que as selavam, quebradas por toda a minha existência. — Nunca se curaram.

Ele não disse nada por um longo tempo.

— Quero vê-las.

Gelei. Fazia anos que eu evitava mexer naquela região: embora tenha sido selada e embora passe o tempo inteira escondida dentro da pele, foi tão deformada que a lembrança de um mínimo movimento vem com toda a dor do ferimento nunca curado.

Com hesitação, virei-me de costas. Eu precisaria desabotoar a parte superior do vestido e exibir as costas nuas, para que pudesse voltar para meus aposentos – ou, melhor, a minha prisão hospitaleira – com certa dignidade. Faeris eram acostumados com a nudez, e, alguns deles, até a preferiam – mas não eu. Qualquer sinal de pele a mostra, era um sinal da minha humanidade que eu precisava esconder, mas, de novo, não havia o que fazer.

Quando abaixo o vestido o bastante, tento invocar algo que havia muito tempo não ousava sentir. As asas respondem com dor. Dor crua, cortante. Meus músculos tensionam como cordas prestes a estalar, meus ossos pareciam tentar se mover por dentro da pele, mas algo os impedia. Como se estivessem... presos. Não apenas partidos. Enfeitiçados.

Um gemido escapou de mim.

— Pare — ordenou ele.

É preciso alguns minutos para que eu consiga me recompor. Para que a dor diminua. Para que minha respiração volte ao mais próximo do que estava, minutos atrás. Leva mais tempo ainda para que eu consiga mover meu corpo, dolorido como se tivesse mesmo inteiro chicoteado, e, só depois de cobrir as costas com o pano azul escuro do vestido, volto a encará-lo. Sua expressão havia mudado. O rosto sério, sempre contido, agora exibia algo que eu não soube nomear. As pupilas dilatadas, os olhos fixos em mim.

Ele parecia prestes a dizer algo. Mas não disse. Apenas desviou o olhar, rápido demais, como se aquilo o queimasse, e saiu da biblioteca com passos que não soaram tão firmes quanto o de costume. A porta se fechou atrás dele como um ponto final que não me pertence.
E eu fiquei ali, cercada de livros que não respondem e dores que não saram, tentando entender o que, em mim, por ele foi visto demais. 

No dia seguinte, demoro mais do que o costume para conseguir levantar. 

A dor muscular da tentativa de abrir as asas, atrofiadas e quebradas há anos, ainda latejando por todo o meu corpo. Mas é mais que dor: é um peso antigo, visceral, como se cada vértebra carregasse consigo a lembrança do que eu poderia ter sido. 

As costas ardem como se fossem terra envenenada, onde algo tenta brotar e é esmagado antes de despontar. Os músculos estão rígidos, tensos como cordas em um instrumento fora de uso, prestes a se partir ao menor esforço. Há também algo nos ombros, vindo com uma pressão constante, como se mãos invisíveis me empurrassem para o chão, exigindo que eu permaneça curvada, submissa, partida. 

Quando respiro mais fundo, sinto fisgadas quentes subindo pela coluna como agulhas arrastadas pela carne: a lembrança da dor e do que um dia ousou nascer. 

Tento massagear os ombros, como se isso pudesse aliviar, como se pudesse convencer meu corpo de que é só tensão e cansaço, mas a dor não é simples: não é humana. E doi como o inferno. 

Quando estou quase pronta para voltar para a cama, desistindo de encarar a dor, escuto o barulho das runas e viro o rosto, esperançosa de ver a velha Faeri outra vez, torcendo para que me deixe explorar mais. Estou sorrindo em sua direção quando percebo que não é ela. 

Não. Não. Não. Não. Não. 

Uma nova criada, mais jovem e bonita, entrou no quarto com passos silenciosos, quase espectrais. Ela não me dirigiu o olhar nem uma vez, como se eu fosse uma sombra ou um objeto a mais no castelo e trazia uma expressão impassível, como se quisesse deixar os aposentos antes mesmo de ter efetivamente o adentado. Noto, em seguida, algo diferente: havia um guarda à porta, estático como uma estátua de pedra e, a luz do dia, percebo novas runas brilhavam nas bordas da porta, selando não só a madeira, mas todo o ar ao redor.

Naquele momento, ao pensar na velha criada, meu peito apertou com uma dor mais aguda que qualquer ferida física: eu a enganava todos os sias, a usava como escudo, e, agora, podia sentir o peso da culpa afundando em meu peito, como correntes frias que apertavam cada vez mais, sufocando qualquer resquício de esperança.

É claro que Vaelis tomaria providencias. Nunca fui uma convidada: cheguei naquele castelo a força, como prisioneira e, até hoje, sequer entendo o que me colocou em um aposento decente.

Sentei-me na cama, reprimindo um gemido e segurando o ar para abafar a dor e escondê-la só para mim, me concentrando em cada detalhe daquele pequeno santuário que agora mais parecia uma prisão reforçada. Pensei em todas as maneiras possíveis de sair dali: as trancas, as janelas cobertas, as frestas minúsculas. Cada canto era uma promessa de fuga, mas haviam runas que eu não poderia desfazer sem acesso a magia faeri

Nos dois dias seguintes, o tempo pareceu escorrer lentamente, como um veneno amargo. A nova rotina a mim imposta era feita de silêncios opressores, vigilia constante e um medo crescente. A criada nova mal falava, movia-se como uma sombra apressada, sem sequer lançar um olhar na minha direção - o que, em certas ocasiões, era mesmo uma benção. O guarda permanecia imóvel na porta, uma sentinela silenciosa que parecia mais um espectro do que um protetor e as runas cintilavam sempre em tom azul frio, bloqueando qualquer tentativa de fuga, qualquer desejo de liberdade.

A monotonia me consumia e cada minuto dentro daquele quarto reforçava a prisão invisível que se fechava ao meu redor. Sequer havia espaço para pensamentos além da dor e da vontade sufocada de gritar. As vezes, sentada na cama ou olhando para as paredes de pedra, tentava encontrar alguma forma de reverter as mudanças que aconteciam em minha aparência a olho nu. 

No terceiro dia, acordei no horário de costume. A dor nas costas ainda dando pequenas pontadas enquanto me movia mas, diferente dos dias anteriores, não é a dor a primeira coisa que noto ao abrir os olhos: há um livro repousando ao meu lado, silencioso e pesado. Instantaneamente, o medo de que alguém tivesse entrado no quarto enquanto eu dormia me avassala, fazendo meu coração disparar e as mãos tremerem, mas não posso deixar de observar o volume com atenção. 

"Fragmentos de Fogo". 

É um título estranho e, quando sento na cama, completamente ereta e ignorando as pontadas na região das asas fraturadas, sinto meu coração pulsar por todo o meu corpo. Assim que abro as páginas, solto um suspiro de susto: cada ilustração, cada mapa rabiscado à margem parecia gritar que aquilo era proibido, que não deveria ser visto por olhos como os meus. As figuras mostravam guerreiros alados, dracos montados em seus dragões,  batalhas entre escamas e chamas, inscrições que detalhavam técnicas de voo e de combate, e símbolos que brilhavam levemente quando a luz tocava as páginas. 

Mas... quem me enviaria algo assim? Por quê?

Minha mente corre para Vaelis, mas algo na escolha do texto, na forma como o livro foi deixado sem assinatura e presença indicava que não fora trabalho dele. Não havia ali o rigor nem a frieza que ele impunha, era algo... diferente. A dúvida me atravessou, mas o impulso e a curiosidade de aprender venceu o receio. Era o mais próximo da história que eu poderia chegar. 

Se passam dias até que eu consiga finalizar o livro, escondendo-o da criada, absorvendo o conteúdo, tendo a certeza de  que cada página virada me aproximava de verdades que ninguém queria que eu descobrisse - ou melhor, alguém, de fato, queria, mas... por quê?

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