17.3.13

A dor da liberdade | Capítulo 1.

Há muito eu perdi as esperanças de enxergar na escuridão

O tempo, aqui, escorre como água sobre pedra: silencioso, persistente e desinteressado. O ar tem gosto de metal e as sombras são apenas borrões difusos, como fantasmas sem formas. Não há janelas e, depois de ter esperado tempo o suficiente para saber que meus olhos mortais não se adaptariam àquele tipo de penumbra, entendi que algumas pessoas simplesmente têm mais sorte do que outras.

Eu sou o quase.

Mãe faeri. Irmãs faeri. Pai humano.

Um erro mágico.

Herdei algumas características que me fazem passar despercebida em certas multidões: os olhos que mudam de cor quando as coisas ficam intensas, embora enxerguem exatamente como os de um humano comum; as orelhas pontudas, que não ouvem mais do que o silêncio; o queixo fino e até as cicatrizes de um brotamento de asas que sequer cheguei a ter. Eu sou o limbo entre o infortúnio de ser pela metade.

O que ainda não entendo é como eles sabiam. Como me encontraram sob tantos feitiços costurados. 

Apesar da minha humanidade nunca ter sido exatamente um segredo para mim, era óbvio para toda a minha família faeri, mesmo para aqueles que nunca tinham ousado perguntar. Nunca soube muito bem o porquê mamãe se apaixonou por um humano, especialmente em uma época como a que nasci, especialmente depois da vitória do Grande Rei, e, mais do que tudo, nunca entendi o porquê d´ela ter engravidado. É mais difícil, para ela, manter o segredo e pagar pelas magias, cada vez mais caras e raras, para que eu pareça ainda mais faeri do que sou, do que seria se tivesse acabado com tudo enquanto ainda era tempo.  

Ainda posso sentir na pele o cheiro da magia faeri usada somente naqueles em quem não querem encostar. Quando preferem que a própria parede empurre, que a água fira, que o silêncio grite. É tão diferente daquela que usam para esconder, imperceptível.

— Ela ainda está viva?

A voz vem de além da porta. Não se dirige a mim. Nenhuma voz se dirige a mim há dias.

— Sim. — responde outra, seca.

Risos abafados. E passos. Um deles hesita. E então, silêncio.

Alguém abre a porta, mas não de verdade: só o bastante para que a luz entre como lâmina. Instintivamente, eu me encolho, esperando a ardência da incandescência depois de dias de escuridão, mas a fresta não chega até meu rosto. Aquele ato, dolorosamente intencional, me queima por dentro. Inferno, como eu queria não estar aqui.

Mas eu o sinto antes de vê-lo, como quem sente a aproximação da tempestade mesmo com o céu ainda azul. Não me atrevo a levantar a cabeça, mas observo o movimento do corpo dele.

Ele não fala. Apenas permanece ali, imóvel, como se não soubesse se devia entrar ou queimar o mundo primeiro.

Por um instante, tudo fica tão quieto que chego a imaginar que o vibrar que sinto por todo o corpo seja apenas medo humano.

Mas então ele respira. Só uma vez, como se fosse um gesto raro, como se demandasse certo esforço. A voz grossa, afiada como cem mil laminas, faz com que cada fio de cabelo meu se arrepie. É como se ele rasgasse minha pele.

— Você é mais quieta do que eu esperava.

Meu coração responde antes que eu consiga impedir. A vibração aumenta e ondula conforme ele fala e sinto que, a qualquer momento, vou vomitar. Então, acho que isto é medo. 

Ele permanece me observando por um tempo longo demais. Longo o suficiente para que o silêncio se transforme em presença. Longo o suficiente para que eu deseje que ele diga algo, qualquer coisa, só para não ter que suportar o peso de seu olhar.

Mas ele apenas me estuda, como quem tenta lembrar de onde conhece uma pintura esquecida. E então, lentamente, se agacha. É isso que mais me surpreende: o gesto. Faeris não se agacham – eles pairam, rondam, sentam em tronos forjados com arrogância e esmeralda. Mas ele… ele dobra os joelhos no chão imundo da cela como se isso não significasse nada.

Pior. Como se eu significasse algo.

Meu instinto é recuar, mas meu corpo não obedece. Estou exausta demais até para o medo que vibra por todo o meu corpo, machucada demais para que me reste uma gota sequer de dignidade.

Ele se inclina, e seus olhos, agora ao nível dos meus, se estreitam. Consigo ver seu rosto, fino e másculo, perfeito e imortal. 

— Está ferida. — diz, com uma calma que não consigo entender.

— Estou. — murmuro, antes que consiga impedir. Minha voz sai fraca, arrastada, quase rasga minha garganta. Não sei sequer se ele consegue entender, pareço um animal.

Ele observa meus pés. Franze o cenho.

— Não deveria estar.  — murmura mais para si mesmo do que para mim.

A confusão na voz dele é discreta, embora exista. É claro que ele esperava cicatrização. Esperava recuperação acelerada, como a de um faeri e como a que eu deveria ter se realmente fosse o que ele pensa que sou.

Sinto meu coração batendo ainda mais forte dentro do peito. Não pelo medo do que ele fará, mas pelo que ainda não sabe.

Eles não sabem.
Não sabem que não sou como eles.
Não sabem que sou metade.
Não sabem que estou aqui por engano.

E ele é o tipo de erro que não pode ser cometido duas vezes.

— Como se chama? — pergunta, mais baixo agora. Há algo inquisitivo e quase… cuidadoso na forma como fala.

— Dorothea — respondo, mais uma vez, sem pensar.

Lembro tarde demais que poderia, simplesmente, ter mentido. Agora, vai ser fácil descobrir que não sou verdadeiramente faeri tendo acesso ao meu nome verdadeiro: não há registros de nascimentos semi-faeri no pós-guerra. Não há registros, porque, simplesmente, não era para eu existir, e, embora eu fosse criada aos olhos de todos, ter registros, no Novo Reino, significava ter o sangue testado. Mamãe planejava alterar meu sangue com magia o suficiente para que enganasse o Grande Rei, mas não houve tempo. Fui capturada antes. 

De qualquer maneira, talvez não consiga mentir por estar fraca demais pela febre que me assola a dias e me inebria os sentidos. Ou o sangue perdido. Ou a solidão cravada na minha garganta.

Ele testa o som do meu nome em silêncio. Não o repete. Apenas desvia o olhar por um segundo, como se isso fosse alguma espécie de vitória íntima dele. E depois se levanta.

— Você não deveria estar no lado sul — diz, voltando à frieza.

Ah. Me perguntava porque havia sido pega tão abruptamente quando tinha certeza que era boa em me esconder. Minha mãe tinha amigos no lado sul, era necessário que fossemos lá a cada seis luas para refazer os feitiços de proteção e, mais do que isso, andei por aquele canto esquecido da floresta tempo o suficiente para conhecer cada detalhe, mas, mesmo para mim, foi uma surpresa quando vi o General Vaelis em pessoa, mandando todos os seus soldados até mim. 

É ainda mais surpreendente pensar em conversar com ele. Ajoelhado. Olhando nos meus olhos. 

— Não estava. Eu estava… só passando.

Ele me encara em completo silêncio. A face impassível, tornado impossível decifrá-lo.

A verdade é que mentiras nunca soam boas na boca de alguém que está à beira da morte, mas o que eu deveria fazer além de me agarrar ao que ele acha que sou?

Ele suspira. Não de cansaço, de decisão.

— Venha.

Demoro a entender. Ele abre a porta por inteiro. A luz se derrama pelo chão, quente e abrupta. Estou cega. Não sei quanto tempo de passou desde a última vez que vi tão claro e meus olhos reagem lacrimejando. Não deveriam, é claro. Não os olhos faeri que ele acha que tenho.

Ele, por outro lado, me oferece passagem. Um gesto simples que mais parece uma sentença.

— Por quê? — pergunto, sem conseguir evitar.

Tento, a todo custo, fazer com que meus olhos se adaptem o suficiente para que eu consiga fazer o que ele pede. Ele, por sua vez,  me encara como se a pergunta fosse irrelevante. Ou pior: como se não houvesse resposta possível que eu fosse capaz de compreender.

— Porque eu disse.

Só isso.

E então, pela primeira vez desde que fui arrancada do que conhecia como mundo, sou convidada a sair, mas nada em mim acredita que será para voltar. 

Meu corpo treme tanto que penso não ser capaz de acatar a ordem recebida, e, quando lembro do que fui fazer na floresta e percebo que ainda meus raptores não fazem ideia que sou mais humana do que faeri, me apavoro. Quanto tempo havia se passado? A magia devia ser feita a cada seis ciclos e, enclausurada nesta sala vazia e fria, sem a luz do sol ou a penumbra da lua, perdi a noção do tempo. Eu precisava sair dali o quanto antes, antes que a magia perdesse efeito e eu simplesmente... Não, não quero nem pensar. 

Meus pés descalços tocam a pedra fria quando me obrigo a levantar. A dor é aguda e traiçoeira. E o mais engraçado é que, quando me encontraram e decidiram me capturar com magia, sequer tocaram em mim, e, ainda assim, consegui me ferir. Tão patética, tão... mestiça. É por isso que o chão parece feito de lâminas embotadas: não cortam de uma vez, mas ferem com paciência enquanto coloco topo o peso do meu corpo na sola dos pés rasgados e inflamados. A dor é tanta que preciso de muito controle para não gritar.

Ele observa. Não se move para ajudar.

As grades rangem atrás de mim e, por um momento, penso que vai fechá-las outra vez;  que é este o sinal de que há sangue humano em minhas veias; que tudo foi uma miragem provocada pela fome ou pelo desespero, mas ele apenas espera.

Atravesso o limiar como quem cruza um rio congelado. Parte de mim ainda crê que é uma armadilha. Que não há liberdade, só uma forma mais elegante de punição. Mas a outra parte, a que ainda se agarra a qualquer migalha de sentido, decide acreditar.

O corredor do lado de fora é úmido e escuro, como uma garganta de pedra. A luz vem de esferas penduradas no teto, como casulos acesos por dentro. Um brilho branco, meio azul, que não aquece. Os faeri gostam de beleza estéril.

— Para onde estamos indo? — pergunto, com esforço.

Ele não responde.

Apenas caminha à frente, com passos firmes e silenciosos, como se conhecesse cada rachadura daquele lugar. Como se ele mesmo fosse parte da arquitetura.

Percebo que seus cabelos são escuros, longos, amarrados com um fio de couro trançado. As roupas têm tons que confundem a vista: algo entre o verde musgo e o cinza da madrugada. Ele parece mais sombra do que homem.

Não é bonito da maneira que os faeri costumam ser. É aterrorizante.

— Você é Vaelis Thorneveil. — constato, baixinho, sem saber por que faço isso.

Ele desacelera. Quase para.

Me arrependo da frase quase no mesmo instante em que ela sai da minha boca; no mesmo instante em que o vejo reagir. É claro que é, não haveria como não ser. Mesmo aqueles que nunca o viram, como eu, saberiam o reconhecer. 

Vaelis é o tipo de criatura que faz o medo voltar a ter corpo. Sua presença não se anuncia com palavras ou estrondos, mas com o arrepio súbito na nuca, com o gelo no estômago, com o tremor involuntário nas mãos. Ninguém precisa ser avisado de que ele entrou em um salão: o corpo sente antes da mente entender.

É alto, quase dois metros de sombra viva. O corpo, moldado pela guerra, é musculoso e contido, com uma força que não precisa se exibir. A pele, branca como a cal da morte, quase reluz à luz da tocha, parecendo feita de pedra fria. Os cabelos são negros, lisos e longos. As orelhas, pontiagudas e horizontais, o denunciam como pertencente a uma casta faeri muito mais antiga,  daquelas que existiam antes da beleza e da luz serem associadas à sua raça. Tão diferentes das minhas, pequenas, simples, comuns

Seus traços são finos, esculpidos com precisão quase cruel: o maxilar marcado, o nariz reto, os lábios finos e sempre cerrados. Mas não há doçura ali. Nem humanidade. 

O que realmente o define é o olhar... ou a ausência de um deles.

Uma cicatriz profunda rasga seu rosto do alto da sobrancelha até metade do nariz, atravessando o olho esquerdo como um raio queimado pela guerra. O globo ocular, opaco, sem brilho, parece feito de névoa congelada. O outro olho — intacto — é de um dourado febril, vivo e cruel, como se carregasse fogo concentrado.
Olhar para ele por muito tempo é como se jogar ao abismo.
Não olhar é como desafiá-lo.

É difícil desviar o olhar tanto quanto é continuar olhando.

A cicatriz o marcou para sempre. Não só no rosto, mas na lenda. Ela foi o preço pelo ataque que selou a vitória do Conselho sobre os rebeldes, a batalha que destruiu três reinos mestiços e instaurou o Novo Reino. Desde então, sua figura se tornou símbolo de lealdade implacável. E de silêncio. E de medo. 
Diz-se que Vaelis nunca levanta a voz. Porque não precisa.

Quando ele aparece, até as paredes parecem segurar o fôlego.

— Eu sou muitos, Dorothea — diz sem se virar. E então continua.

Sei que deveria me calar. Mas o silêncio é mais cruel do que a ignorância.

— E por que me tirou de lá?

Dessa vez ele responde sem hesitar:

— Porque ninguém sobrevive naquela cela por três ciclos sem enlouquecer. E você… não enlouqueceu.

A risada que escapa da minha boca é seca, dolorida, involuntária.

É impossível que tenha se passado três ciclos inteiros. Impossível que ainda consiga andar ou mesmo falar depois de todo este tempo com o mínimo de água e comida. Três ciclos... eu não deveria ter enlouquecido: deveria ter morrido antes mesmo do segundo começar. 

— Três... ciclos? – pergunto, ainda incerta.   

Ele não responde.

Continuamos por corredores cada vez mais estreitos, como se nos afastássemos do coração da prisão. Mas há algo errado: o ar começa a mudar. Fica mais limpo. Mais fresco. Ouço um som distante que só pode indicar água corrente.

Ele para diante de uma porta de pedra entalhada com símbolos antigos. Coloca a mão sobre um deles. A marca brilha, viva, e a porta se desfaz como poeira ao vento – magia ancestral que jamais poderei usar.

Atrás dela, há uma câmara pequena. Um aposento de pedra polida com um leito simples, um jarro de água e uma tocha encantada que bruxuleia sem consumir nada.

— Fique aqui — diz ele, sem me olhar. — Alguém virá com roupas. E comida.

— Alguém?

Ele hesita. Apenas por um segundo.

— Alguém.

E então se afasta, como se tivesse cumprido sua parte.

Mas antes de desaparecer no corredor, ele se vira. Seu rosto imortal, lindo e cruel na mesma medida, me encara.

— Não fale com ninguém sobre... Você

O olhar dele é tão cortante que me dá calafrios. Sinto meu estômago se revirar outra vez e, agora, a vibração, que nunca me deixou, volta tão forte que sinto um zumbido nas orelhas. Meus pés latejam, a dor me apavora tanto quanto a ordem, e percebo que deixei um rastro de sangue por todo o caminho. 

E então ele se vai, silencioso e letal, deixando para trás apenas uma única certeza: teria sido melhor que tivessem me matado.

faeri que tratou meus pés surgiu como uma sombra e partiu como um segredo. Nunca soube o nome dele: vinha em doses pequenas e ficava apenas o tempo necessário para impedir que eu apodrecesse. Limpou todo o sangue, envolveu meus cortes com um bálsamo espesso e frio e os enfaixou com precisão clínica.

Tudo o que lembro é que havia sempre certa urgência em seus gestos e, como a criatura evitava meu olhar, passei a notar para onde ele direcionava o seu – longe; sempre longe de mim. Me perguntava o que se passava em sua cabeça, mas, depois do terceiro dia de cuidados, tive certeza de que ele desconfiava de algo: as feridas não fechavam e, embora não estivessem mais fedendo, ainda pareciam nojentas o suficiente para que ele soubesse o que eu não era.

No quarto dia, ele desapareceu.

Desde então, fui deixada aos cuidados de uma senhora de cabelos prateados e mãos cheias de rugas. Diferente dele, ela fala. Não muito, mas o suficiente para me lembrar de que ainda pertenço a este mundo. Às vezes, quando acha que durmo, murmura frases desconexas enquanto troca os panos das janelas e alinha os vidros na prateleira, quase como se não conseguisse manter os pensamentos dentro da própria cabeça.

Meus pés ainda doem e os cortes cicatrizaram devagar. Mais devagar do que eu gostaria e, com certeza, mais devagar do que seria normal para uma faeri. Ainda os sinto frágeis, como se cada passo pudesse rasgar tudo de novo. Uma lembrança viva da punição e uma prova incontestável de que eu não pertenço a esse lugar. Que nunca pertenci, mesmo que, na aparência, fossemos praticamente idênticos.

Primeiro, passei dias apenas deitada, observando o teto, porque não queria arriscar o peso do meu próprio corpo sob meus pés. Depois, sentada na poltrona ao lado da janela fechada, passei a ensaiar jeitos de sair daqueles aposentos – eu sequer tinha certeza se estava presa de verdade, mas não havia uma gota de magia ancestral em meu sangue que fosse capaz de abrir aquelas paredes de pedra, ou, ao menos, tentar. Também não havia muito o que eu pudesse fazer, no inicio, com os pés machucados daquela forma. Mas meus olhos estavam atentos e, minha mente, também.

A criada que ele mandou é meticulosa, mas previsível. Tem horários. Tem vícios. Ela demora demais antes de voltar a fechar a parede com as runas, solta um suspiro sempre que termina de costurar algo, e, as vezes, hesita quando me vê sorrir. Não confia em mim, e, por isso, enquanto estava em sua presença, fingia não levantar por vontade – nunca porque não podia – e, desta forma, ela passou a acreditar que sou uma simples tola.

Eu alimento essa crença. Aprendi a sorrir com doçura e inclinar a cabeça de um jeito que sei que pareço menor e mais frágil, quase infantil. Finjo me assustar com barulhos, agradecer demais pelos favores e até elogio as sopas aguadas como se fossem banquetes diretos de Cindralon. Quando ela passa a sorrir de volta, o rosto suavizando, sei que está caindo na armadilha.

Em uma das manhãs, implorei para ver as flores. “Só um pouquinho”, disse, segurando sua mão com um olhar que roubei de uma menina que vi morrer na fronteira, como se estivesse acostumada demais com jardins para que a ideia de não os ver fosse insuportável. “Prometo que, se me fizer mal, eu saio voando de volta para cá.”, menti, como se realmente fosse capaz de tal. Nunca havia voado, e, mesmo que tivesse, jamais saberia usar as runas para abrir o cômodo.

Ela riu, achando graça. Me achou inofensiva e, então, permitiu.

O jardim não era grande. Havia algumas flores silvestres, arbustos bem cuidados e estátuas antigas cobertas de heras. Era lindo, embora modesto, e percebo, pela primeira vez, que estou nos domínios de alguém importante. A faeri havia me deixado sozinha com a promessa de que voltaria dali a pouco, confiante o suficiente de minha fragilidade e doçura forjadas para ter certeza de que eu sequer tentaria escapar – e eu não iria, por hora. Àquela altura, vestia roupas boas o suficiente para que não fosse confundida com uma invasora e, com a minha aparência tipicamente faeri, embora todo o resto de mim não o fosse, conseguia transitar sem chamar atenção.

No entanto, não foi a beleza do lugar que me prendeu, mas os sussurros.

A voz veio de além da sebe, baixa, pouco audível, como se confiada demais pela própria sombra. A princípio, achei que fosse um par de criadas e me aproximei com passos cuidadosos, inclinando a cabeça para parecer distraída com as flores, como se caçasse uma pétala especial, como se realmente tivesse com saudade da natureza. Só depois, já próxima o suficiente para não ser vista e, ainda assim, ser capaz de escutar, percebi o timbre mais duro e autoritário.

— já tomaram a ala oeste. O Conselho fingiu não saber, mas foi ordenado.

— E os registros?

— Reescritos. Os arquivos que provavam o sangue cruzado… sumiram. Não há sinal em lugar algum do paradeiro.

— Se isso vier à tona...

— Não virá. Nenhum deles será capaz de admitir.

O silêncio que seguiu foi mais pesado do que as palavras.

Minhas costas ficaram tensas e sequer ousei respirar, me abaixando atrás de uma trepadeira grossa, fingindo olhar uma flor em botão, enquanto colocava todo o meu corpo em alerta.

Se eu tivesse entendido bem, o Conselho escondia... mestiços?

Quase consigo sentir meu coração sair pela boca e, pela forma como pulsa, sei que meus olhos mudaram de cor. Desde que havia ganhado certa confiança na rotina que ali me fora imposta, eles haviam voltado a cor castanha habitual, mas eu tinha certeza, pelo arrepio que tomava toda a minha espinha, que  deviam exibir os mesmos tons de cinza que eu carregava quando fui capturada.

O tempo vinha passando rápido demais. Logo mais a magia ia enfraquecer o suficiente para que cada olhar faeri sobre mim percebesse, sem esforço algum, que eu não era como eles: não andava como eles; não cheirava como eles; não tinha a beleza deles. 

Seguro um grito quando escuto a criada chamar meu nome, sua voz cortando o jardim com leveza, soando como um alerta. Levantei com esforço, como se o calor tivesse me vencido e, torcendo para que ela não repare em meus olhos, sorrio como uma tola e caminho até seu encontro, uma flor em botão presa entre os dedos.

A senhora toma meu braço com uma gentileza forçada, mas percebo a rigidez nos seus dedos. Minha mente tenta entender o que fazer para alterar a cor dos meus olhos, para que ela não os perceba, assim como já vi alguns faeri o fazer, mas o meu lado fraco, o lado humano, não me deixa dominar. Estou suando frio, quando ela suspira e diz.

— Passou muito tempo no sol, criança. Vai enfraquecer de novo.

Assinto com um aceno pequeno e me deixo ser conduzida de volta ao quarto. Durante o caminho, aperto os lábios para não perguntar nada, para não ceder à urgência de saber mais sobre o que ouvi.

Quando voltamos ao quarto, o jarro de água havia sido trocado, e, as almofadas haviam sido afofadas com mais zelo do que o habitual. Os frascos na prateleira estavam organizados em uma nova ordem, numa mudança tão pequena, quase imperceptível. A senhora pareceu hesitar antes de me soltar, e seus olhos demoraram mais do que o necessário sobre os meus. 

Segurei o fôlego.

A cor. Maldição, a cor.

Tentei manter o olhar baixo, quase opaco, como se o calor do jardim tivesse me vencido e murmurei um agradecimento fraco, sorrindo com uma doçura ensaiada e me afundei nas almofadas assim que ela saiu. Se notou alguma mudança, resolveu não comentar.

É só então que solto o ar que sequer sabia que estava prendendo.

Ando, cuidadosa, até o espelho mais próximo. Meu olhar cinzento me encarando de volta. Inferno. Quanto tempo demoraria para que voltassem ao normal? Eu ainda conseguia sentir a vibração nos ossos, o tremor involuntário da mácula que carregava.

Me afasto do espelho, sem conseguir me olhar de verdade.

As palavras que ouvi no jardim continuam se repetindo em mim como um eco sem fim. A ala oeste. Os arquivos. O sangue cruzado. A queima dos registros. O que isso significava?

Nunca tinha ouvido falar nisso. Nunca. E olha que eu aprendi, desde muito nova, a escutar. A memorizar o que não era dito, a me esconder a vista de todos. A sobreviver.

Mas… arquivos reescritos? Registros apagados?

Que tipo de verdade é perigosa o suficiente para precisar ser extinta?

Levo a mão até a perna, sentindo a dor antiga nas juntas, e tento lembrar da última vez que vi minha mãe. Ou minhas irmãs. A memória é falha, borrada pelas imagens da fuga: meus pés descalços correndo sobre raízes, o som dos faeri  me caçando, as runas queimando no ar, o cheiro de folha molhada e sangue.

Fui arrancada da floresta como se nunca tivesse pertencido a ela. E mesmo que eu voltasse… voltaria pra onde? Estava longe o suficiente de casa no dia que me capturaram e jamais poderia arriscar voltar só para colocar minha família, de sangue puro, em risco por abrigar alguém como eu. Uma mestiça.

Passei toda a minha vida escondendo a verdade bem debaixo do nariz de todo mundo. As vezes, até me esquecia eu mesma de que não era como minhas irmãs – lindas, graciosas, imortais. A medida que os anos passavam, o peso de ser diferente era cada vez mais avassalador.

Fecho os olhos.

Pela primeira vez desde que cheguei aqui, sinto algo diferente do medo.

Sinto... falta. Falta de alguém chamar meu nome com ternura; de ouvir minha mãe cantarolar enquanto penteava meus cabelos; das pequenas mãos das minhas irmãs segurando as minhas quando o mundo parecia grande demais.

O broto de flor que trouxe do jardim ainda está comigo. Coloco-a sobre a prateleira, ao lado de um dos frascos. Suas pétalas ainda estão firmes. A cor, viva. Um pequeno milagre.

As vezes, a ignorância é mesmo uma benção. 

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