Há
muito eu perdi as esperanças de enxergar na escuridão
O
tempo, aqui, escorre como água sobre pedra: silencioso, persistente e
desinteressado. O ar tem gosto de metal e as sombras são apenas borrões
difusos, como fantasmas sem formas. Não há janelas e, depois de ter esperado
tempo o suficiente para saber que meus olhos mortais não se adaptariam àquele
tipo de penumbra, entendi que algumas pessoas simplesmente têm mais sorte do
que outras.
Eu
sou o quase.
Mãe
faeri. Irmãs faeri. Pai humano.
Um
erro mágico.
Herdei
algumas características que me fazem passar despercebida em certas multidões:
os olhos que mudam de cor quando as coisas ficam intensas, embora enxerguem
exatamente como os de um humano comum; as orelhas pontudas, que não ouvem mais
do que o silêncio; o queixo fino e até as cicatrizes de um brotamento de asas
que sequer cheguei a ter. Eu sou o limbo entre o infortúnio de ser pela metade.
O
que ainda não entendo é como eles sabiam. Como me encontraram
sob tantos feitiços costurados.
Apesar
da minha humanidade nunca ter sido exatamente um segredo para mim, era óbvio
para toda a minha família faeri, mesmo para aqueles que nunca
tinham ousado perguntar. Nunca soube muito bem o porquê mamãe se apaixonou por
um humano, especialmente em uma época como a que nasci, especialmente depois da
vitória do Grande Rei, e, mais do que tudo, nunca entendi o porquê d´ela ter
engravidado. É mais difícil, para ela, manter o segredo e pagar pelas magias,
cada vez mais caras e raras, para que eu pareça ainda mais faeri do
que sou, do que seria se tivesse acabado com tudo enquanto ainda era
tempo.
Ainda
posso sentir na pele o cheiro da magia faeri usada somente
naqueles em quem não querem encostar. Quando preferem que a própria parede
empurre, que a água fira, que o silêncio grite. É tão diferente daquela que
usam para esconder, imperceptível.
—
Ela ainda está viva?
A
voz vem de além da porta. Não se dirige a mim. Nenhuma voz se dirige a mim há
dias.
—
Sim. — responde outra, seca.
Risos
abafados. E passos. Um deles hesita. E então, silêncio.
Alguém
abre a porta, mas não de verdade: só o bastante para que a luz entre como
lâmina. Instintivamente, eu me encolho, esperando a ardência da incandescência
depois de dias de escuridão, mas a fresta não chega até meu rosto. Aquele ato,
dolorosamente intencional, me queima por dentro. Inferno, como eu
queria não estar aqui.
Mas
eu o sinto antes de vê-lo, como quem sente a aproximação da tempestade mesmo
com o céu ainda azul. Não me atrevo a levantar a cabeça, mas observo o
movimento do corpo dele.
Ele
não fala. Apenas permanece ali, imóvel, como se não soubesse se devia entrar ou
queimar o mundo primeiro.
Por
um instante, tudo fica tão quieto que chego a imaginar que o vibrar que sinto
por todo o corpo seja apenas medo humano.
Mas
então ele respira. Só uma vez, como se fosse um gesto raro, como se demandasse
certo esforço. A voz grossa, afiada como cem mil laminas, faz com que cada fio
de cabelo meu se arrepie. É como se ele rasgasse minha pele.
—
Você é mais quieta do que eu esperava.
Meu
coração responde antes que eu consiga impedir. A vibração aumenta e ondula
conforme ele fala e sinto que, a qualquer momento, vou vomitar. Então,
acho que isto é medo.
Ele
permanece me observando por um tempo longo demais. Longo o suficiente para que
o silêncio se transforme em presença. Longo o suficiente para que eu deseje que
ele diga algo, qualquer coisa, só para não ter que suportar o peso
de seu olhar.
Mas
ele apenas me estuda, como quem tenta lembrar de onde conhece uma pintura
esquecida. E então, lentamente, se agacha. É isso que mais me surpreende: o
gesto. Faeris não se agacham – eles pairam, rondam, sentam em tronos
forjados com arrogância e esmeralda. Mas ele… ele dobra os joelhos no chão
imundo da cela como se isso não significasse nada.
Pior.
Como se eu significasse algo.
Meu
instinto é recuar, mas meu corpo não obedece. Estou exausta demais até para o
medo que vibra por todo o meu corpo, machucada demais para que me reste uma
gota sequer de dignidade.
Ele
se inclina, e seus olhos, agora ao nível dos meus, se estreitam. Consigo ver
seu rosto, fino e másculo, perfeito e imortal.
—
Está ferida. — diz, com uma calma que não consigo entender.
—
Estou. — murmuro, antes que consiga impedir. Minha voz sai fraca, arrastada,
quase rasga minha garganta. Não sei sequer se ele consegue entender, pareço
um animal.
Ele
observa meus pés. Franze o cenho.
—
Não deveria estar. — murmura mais para si mesmo do que para mim.
A
confusão na voz dele é discreta, embora exista. É claro que ele esperava
cicatrização. Esperava recuperação acelerada, como a de um faeri e
como a que eu deveria ter se realmente fosse o que ele pensa que sou.
Sinto
meu coração batendo ainda mais forte dentro do peito. Não pelo medo do que ele
fará, mas pelo que ainda não sabe.
Eles
não sabem.
Não sabem que não sou como eles.
Não sabem que sou metade.
Não sabem que estou aqui por engano.
E
ele é o tipo de erro que não pode ser cometido duas vezes.
—
Como se chama? — pergunta, mais baixo agora. Há algo inquisitivo e quase…
cuidadoso na forma como fala.
— Dorothea —
respondo, mais uma vez, sem pensar.
Lembro
tarde demais que poderia, simplesmente, ter mentido. Agora, vai ser fácil
descobrir que não sou verdadeiramente faeri tendo acesso ao
meu nome verdadeiro: não há registros de nascimentos semi-faeri no
pós-guerra. Não há registros, porque, simplesmente, não era para eu existir, e,
embora eu fosse criada aos olhos de todos, ter registros, no Novo Reino,
significava ter o sangue testado. Mamãe planejava alterar meu sangue com magia o suficiente para que enganasse o Grande Rei, mas não houve tempo.
Fui capturada antes.
De
qualquer maneira, talvez não consiga mentir por estar fraca demais pela febre
que me assola a dias e me inebria os sentidos. Ou o sangue perdido. Ou a
solidão cravada na minha garganta.
Ele
testa o som do meu nome em silêncio. Não o repete. Apenas desvia o olhar por um
segundo, como se isso fosse alguma espécie de vitória íntima dele. E depois se
levanta.
—
Você não deveria estar no lado sul — diz, voltando à frieza.
Ah. Me
perguntava porque havia sido pega tão abruptamente quando tinha certeza que era
boa em me esconder. Minha mãe tinha amigos no lado sul, era necessário que
fossemos lá a cada seis luas para refazer os feitiços de proteção e, mais do
que isso, andei por aquele canto esquecido da floresta tempo o suficiente para
conhecer cada detalhe, mas, mesmo para mim, foi uma surpresa quando vi o
General Vaelis em pessoa, mandando todos os seus soldados até mim.
É
ainda mais surpreendente pensar em conversar com ele. Ajoelhado. Olhando nos
meus olhos.
—
Não estava. Eu estava… só passando.
Ele
me encara em completo silêncio. A face impassível, tornado impossível
decifrá-lo.
A
verdade é que mentiras nunca soam boas na boca de alguém que está à beira da
morte, mas o que eu deveria fazer além de me agarrar ao que ele acha que sou?
Ele
suspira. Não de cansaço, de decisão.
—
Venha.
Demoro
a entender. Ele abre a porta por inteiro. A luz se derrama pelo chão, quente e
abrupta. Estou cega. Não sei quanto tempo de passou desde a última vez que vi
tão claro e meus olhos reagem lacrimejando. Não deveriam, é claro. Não os
olhos faeri que ele acha que tenho.
Ele,
por outro lado, me oferece passagem. Um gesto simples que mais parece uma
sentença.
—
Por quê? — pergunto, sem conseguir evitar.
Tento,
a todo custo, fazer com que meus olhos se adaptem o suficiente para que eu
consiga fazer o que ele pede. Ele, por sua vez, me encara como se a
pergunta fosse irrelevante. Ou pior: como se não houvesse resposta possível que
eu fosse capaz de compreender.
—
Porque eu disse.
Só
isso.
E
então, pela primeira vez desde que fui arrancada do que conhecia como mundo,
sou convidada a sair, mas nada em mim acredita que será para voltar.
Meu
corpo treme tanto que penso não ser capaz de acatar a ordem recebida, e, quando
lembro do que fui fazer na floresta e percebo que ainda meus raptores não fazem
ideia que sou mais humana do que faeri, me apavoro. Quanto tempo
havia se passado? A magia devia ser feita a cada seis ciclos e, enclausurada
nesta sala vazia e fria, sem a luz do sol ou a penumbra da lua, perdi a noção
do tempo. Eu precisava sair dali o quanto antes, antes que a magia perdesse
efeito e eu simplesmente... Não, não quero nem pensar.
Meus
pés descalços tocam a pedra fria quando me obrigo a levantar. A dor é aguda e
traiçoeira. E o mais engraçado é que, quando me encontraram e decidiram me
capturar com magia, sequer tocaram em mim, e, ainda assim, consegui me ferir.
Tão patética, tão... mestiça. É por isso que o chão parece feito de
lâminas embotadas: não cortam de uma vez, mas ferem com paciência enquanto
coloco topo o peso do meu corpo na sola dos pés rasgados e inflamados. A dor é
tanta que preciso de muito controle para não gritar.
Ele
observa. Não se move para ajudar.
As
grades rangem atrás de mim e, por um momento, penso que vai fechá-las outra
vez; que é este o sinal de que há sangue humano em minhas veias; que tudo
foi uma miragem provocada pela fome ou pelo desespero, mas ele apenas espera.
Atravesso
o limiar como quem cruza um rio congelado. Parte de mim ainda crê que é uma
armadilha. Que não há liberdade, só uma forma mais elegante de punição. Mas a
outra parte, a que ainda se agarra a qualquer migalha de sentido, decide
acreditar.
O
corredor do lado de fora é úmido e escuro, como uma garganta de pedra. A luz
vem de esferas penduradas no teto, como casulos acesos por dentro. Um brilho
branco, meio azul, que não aquece. Os faeri gostam de beleza
estéril.
—
Para onde estamos indo? — pergunto, com esforço.
Ele
não responde.
Apenas
caminha à frente, com passos firmes e silenciosos, como se conhecesse cada
rachadura daquele lugar. Como se ele mesmo fosse parte da arquitetura.
Percebo
que seus cabelos são escuros, longos, amarrados com um fio de couro trançado.
As roupas têm tons que confundem a vista: algo entre o verde musgo e o cinza da
madrugada. Ele parece mais sombra do que homem.
Não
é bonito da maneira que os faeri costumam ser. É
aterrorizante.
—
Você é Vaelis Thorneveil. — constato, baixinho, sem saber por que faço
isso.
Ele
desacelera. Quase para.
Me
arrependo da frase quase no mesmo instante em que ela sai da minha boca; no
mesmo instante em que o vejo reagir. É claro que é, não haveria como não ser.
Mesmo aqueles que nunca o viram, como eu, saberiam o reconhecer.
Vaelis
é o tipo de criatura que faz o medo voltar a ter corpo. Sua presença não
se anuncia com palavras ou estrondos, mas com o arrepio súbito na nuca,
com o gelo no estômago, com o tremor involuntário nas mãos. Ninguém
precisa ser avisado de que ele entrou em um salão: o corpo sente antes da
mente entender.
É
alto, quase dois metros de sombra viva. O corpo, moldado pela guerra,
é musculoso e contido, com uma força que não precisa se exibir. A
pele, branca como a cal da morte, quase reluz à luz da tocha, parecendo
feita de pedra fria. Os cabelos são negros, lisos e
longos. As orelhas, pontiagudas e horizontais, o denunciam como
pertencente a uma casta faeri muito mais antiga,
daquelas que existiam antes da beleza e da luz serem associadas à sua raça. Tão
diferentes das minhas, pequenas, simples, comuns.
Seus
traços são finos, esculpidos com precisão quase cruel: o maxilar marcado,
o nariz reto, os lábios finos e sempre cerrados. Mas não há doçura ali. Nem
humanidade.
O
que realmente o define é o olhar... ou a ausência de um deles.
Uma
cicatriz profunda rasga seu rosto do alto da sobrancelha até metade do nariz,
atravessando o olho esquerdo como um raio queimado pela guerra. O globo
ocular, opaco, sem brilho, parece feito de névoa congelada. O outro olho —
intacto — é de um dourado febril, vivo e cruel, como se carregasse fogo
concentrado.
Olhar para ele por muito tempo é como se jogar ao abismo.
Não olhar é como desafiá-lo.
É
difícil desviar o olhar tanto quanto é continuar olhando.
A
cicatriz o marcou para sempre. Não só no rosto, mas na lenda. Ela foi o preço
pelo ataque que selou a vitória do Conselho sobre os rebeldes, a batalha que
destruiu três reinos mestiços e instaurou o Novo Reino. Desde
então, sua figura se tornou símbolo de lealdade implacável. E de
silêncio. E de medo.
Diz-se que Vaelis nunca levanta a voz. Porque não precisa.
Quando
ele aparece, até as paredes parecem segurar o fôlego.
—
Eu sou muitos, Dorothea — diz sem se virar. E então continua.
Sei
que deveria me calar. Mas o silêncio é mais cruel do que a ignorância.
—
E por que me tirou de lá?
Dessa
vez ele responde sem hesitar:
—
Porque ninguém sobrevive naquela cela por três ciclos sem enlouquecer. E você…
não enlouqueceu.
A
risada que escapa da minha boca é seca, dolorida, involuntária.
É
impossível que tenha se passado três ciclos inteiros. Impossível que ainda
consiga andar ou mesmo falar depois de todo este tempo com o mínimo de água e
comida. Três ciclos... eu não deveria ter enlouquecido: deveria ter morrido
antes mesmo do segundo começar.
—
Três... ciclos? – pergunto, ainda incerta.
Ele
não responde.
Continuamos
por corredores cada vez mais estreitos, como se nos afastássemos do coração da
prisão. Mas há algo errado: o ar começa a mudar. Fica mais limpo. Mais fresco.
Ouço um som distante que só pode indicar água corrente.
Ele
para diante de uma porta de pedra entalhada com símbolos antigos. Coloca a mão
sobre um deles. A marca brilha, viva, e a porta se desfaz como poeira ao vento
– magia ancestral que jamais poderei usar.
Atrás
dela, há uma câmara pequena. Um aposento de pedra polida com um leito simples,
um jarro de água e uma tocha encantada que bruxuleia sem consumir nada.
—
Fique aqui — diz ele, sem me olhar. — Alguém virá com roupas. E comida.
—
Alguém?
Ele
hesita. Apenas por um segundo.
—
Alguém.
E
então se afasta, como se tivesse cumprido sua parte.
Mas
antes de desaparecer no corredor, ele se vira. Seu rosto imortal, lindo e cruel
na mesma medida, me encara.
—
Não fale com ninguém sobre... Você.
O
olhar dele é tão cortante que me dá calafrios. Sinto meu estômago se revirar
outra vez e, agora, a vibração, que nunca me deixou, volta tão forte que sinto
um zumbido nas orelhas. Meus pés latejam, a dor me apavora tanto quanto a
ordem, e percebo que deixei um rastro de sangue por todo o caminho.
E
então ele se vai, silencioso e letal, deixando para trás apenas uma única
certeza: teria sido melhor que tivessem me matado.
O faeri que
tratou meus pés surgiu como uma sombra e partiu como um segredo. Nunca soube o
nome dele: vinha em doses pequenas e ficava apenas o tempo necessário para
impedir que eu apodrecesse. Limpou todo o sangue, envolveu meus cortes com um
bálsamo espesso e frio e os enfaixou com precisão clínica.
Tudo
o que lembro é que havia sempre certa urgência em seus gestos e, como a
criatura evitava meu olhar, passei a notar para onde ele direcionava o seu
– longe; sempre longe de mim. Me perguntava o que se passava em sua
cabeça, mas, depois do terceiro dia de cuidados, tive certeza de que ele
desconfiava de algo: as feridas não fechavam e, embora não estivessem mais
fedendo, ainda pareciam nojentas o suficiente para que ele soubesse o
que eu não era.
No
quarto dia, ele desapareceu.
Desde
então, fui deixada aos cuidados de uma senhora de cabelos prateados e mãos
cheias de rugas. Diferente dele, ela fala. Não muito, mas o suficiente para me
lembrar de que ainda pertenço a este mundo. Às vezes, quando acha que durmo,
murmura frases desconexas enquanto troca os panos das janelas e alinha os
vidros na prateleira, quase como se não conseguisse manter os pensamentos
dentro da própria cabeça.
Meus
pés ainda doem e os cortes cicatrizaram devagar. Mais devagar do que eu
gostaria e, com certeza, mais devagar do que seria normal para uma faeri.
Ainda os sinto frágeis, como se cada passo pudesse rasgar tudo de novo. Uma
lembrança viva da punição e uma prova incontestável de que eu não pertenço a
esse lugar. Que nunca pertenci, mesmo que, na aparência, fossemos praticamente
idênticos.
Primeiro,
passei dias apenas deitada, observando o teto, porque não queria arriscar o
peso do meu próprio corpo sob meus pés. Depois, sentada na poltrona ao lado da
janela fechada, passei a ensaiar jeitos de sair daqueles aposentos – eu sequer
tinha certeza se estava presa de verdade, mas não havia uma gota de magia
ancestral em meu sangue que fosse capaz de abrir aquelas paredes de pedra, ou,
ao menos, tentar. Também não havia muito o que eu pudesse fazer, no inicio, com
os pés machucados daquela forma. Mas meus olhos estavam atentos e, minha mente,
também.
A
criada que ele mandou é meticulosa, mas previsível. Tem
horários. Tem vícios. Ela demora demais antes de voltar a fechar a parede com
as runas, solta um suspiro sempre que termina de costurar algo, e, as vezes,
hesita quando me vê sorrir. Não confia em mim, e, por isso, enquanto estava em
sua presença, fingia não levantar por vontade – nunca porque não podia – e,
desta forma, ela passou a acreditar que sou uma simples tola.
Eu
alimento essa crença. Aprendi a sorrir com doçura e inclinar a cabeça de um
jeito que sei que pareço menor e mais frágil, quase infantil. Finjo me assustar
com barulhos, agradecer demais pelos favores e até elogio as sopas aguadas como
se fossem banquetes diretos de Cindralon. Quando ela passa a sorrir
de volta, o rosto suavizando, sei que está caindo na armadilha.
Em
uma das manhãs, implorei para ver as flores. “Só um pouquinho”, disse,
segurando sua mão com um olhar que roubei de uma menina que vi morrer na
fronteira, como se estivesse acostumada demais com jardins para que a ideia de
não os ver fosse insuportável. “Prometo que, se me fizer mal, eu saio
voando de volta para cá.”, menti, como se realmente fosse capaz de
tal. Nunca havia voado, e, mesmo que tivesse, jamais saberia usar as runas para
abrir o cômodo.
Ela
riu, achando graça. Me achou inofensiva e, então, permitiu.
O
jardim não era grande. Havia algumas flores silvestres, arbustos bem cuidados e
estátuas antigas cobertas de heras. Era lindo, embora modesto, e percebo, pela
primeira vez, que estou nos domínios de alguém importante. A faeri havia me
deixado sozinha com a promessa de que voltaria dali a pouco, confiante o
suficiente de minha fragilidade e doçura forjadas para ter certeza de que eu
sequer tentaria escapar – e eu não iria, por hora. Àquela altura, vestia roupas
boas o suficiente para que não fosse confundida com uma invasora e, com a minha
aparência tipicamente faeri, embora todo o resto de mim não o fosse, conseguia
transitar sem chamar atenção.
No
entanto, não foi a beleza do lugar que me prendeu, mas os sussurros.
A
voz veio de além da sebe, baixa, pouco audível, como se confiada demais pela
própria sombra. A princípio, achei que fosse um par de criadas e me aproximei
com passos cuidadosos, inclinando a cabeça para parecer distraída com as
flores, como se caçasse uma pétala especial, como se realmente tivesse
com saudade da natureza. Só depois, já próxima o suficiente
para não ser vista e, ainda assim, ser capaz de escutar, percebi o timbre mais
duro e autoritário.
— …já
tomaram a ala oeste. O Conselho fingiu não saber, mas foi ordenado.
—
E os registros?
—
Reescritos. Os arquivos que provavam o sangue cruzado… sumiram. Não há sinal em
lugar algum do paradeiro.
—
Se isso vier à tona...
—
Não virá. Nenhum deles será capaz de admitir.
O
silêncio que seguiu foi mais pesado do que as palavras.
Minhas
costas ficaram tensas e sequer ousei respirar, me abaixando atrás de uma
trepadeira grossa, fingindo olhar uma flor em botão, enquanto colocava todo o
meu corpo em alerta.
Se
eu tivesse entendido bem, o Conselho escondia... mestiços?
Quase consigo sentir meu coração sair pela boca e, pela forma como pulsa, sei que meus olhos mudaram de cor.
Desde que havia ganhado certa confiança na rotina que ali me fora imposta, eles
haviam voltado a cor castanha habitual, mas eu tinha certeza, pelo arrepio que
tomava toda a minha espinha, que deviam exibir os mesmos tons de cinza
que eu carregava quando fui capturada.
O tempo vinha passando rápido demais. Logo mais a magia ia enfraquecer o suficiente para que cada olhar faeri sobre mim percebesse, sem esforço algum, que eu não era como eles: não andava como eles; não cheirava como eles; não tinha a beleza deles.
Seguro
um grito quando escuto a criada chamar meu nome, sua voz cortando o jardim com
leveza, soando como um alerta. Levantei com esforço, como se o calor tivesse me
vencido e, torcendo para que ela não repare em meus olhos, sorrio como uma tola
e caminho até seu encontro, uma flor em botão presa entre os dedos.
A
senhora toma meu braço com uma gentileza forçada, mas percebo a rigidez nos
seus dedos. Minha mente tenta entender o que fazer para alterar a cor dos meus
olhos, para que ela não os perceba, assim como já vi alguns faeri o fazer, mas
o meu lado fraco, o lado humano, não me deixa dominar. Estou suando frio,
quando ela suspira e diz.
—
Passou muito tempo no sol, criança. Vai enfraquecer de novo.
Assinto
com um aceno pequeno e me deixo ser conduzida de volta ao quarto. Durante o
caminho, aperto os lábios para não perguntar nada, para não ceder à urgência de
saber mais sobre o que ouvi.
Quando
voltamos ao quarto, o jarro de água havia sido trocado, e, as almofadas haviam
sido afofadas com mais zelo do que o habitual. Os frascos na prateleira estavam
organizados em uma nova ordem, numa mudança tão pequena, quase imperceptível. A
senhora pareceu hesitar antes de me soltar, e seus olhos demoraram mais do que
o necessário sobre os meus.
Segurei
o fôlego.
A
cor. Maldição, a cor.
Tentei
manter o olhar baixo, quase opaco, como se o calor do jardim tivesse me vencido
e murmurei um agradecimento fraco, sorrindo com uma doçura ensaiada e me
afundei nas almofadas assim que ela saiu. Se notou alguma mudança, resolveu não
comentar.
É
só então que solto o ar que sequer sabia que estava prendendo.
Ando,
cuidadosa, até o espelho mais próximo. Meu olhar cinzento me encarando de
volta. Inferno. Quanto tempo demoraria para que voltassem ao
normal? Eu ainda conseguia sentir a vibração nos ossos, o tremor involuntário
da mácula que carregava.
Me
afasto do espelho, sem conseguir me olhar de verdade.
As
palavras que ouvi no jardim continuam se repetindo em mim como um eco sem
fim. A ala oeste. Os arquivos. O sangue cruzado. A queima dos registros.
O que isso significava?
Nunca
tinha ouvido falar nisso. Nunca. E olha que eu aprendi, desde muito nova, a
escutar. A memorizar o que não era dito, a me esconder a vista de todos. A
sobreviver.
Mas… arquivos
reescritos? Registros apagados?
Que
tipo de verdade é perigosa o suficiente para precisar ser extinta?
Levo
a mão até a perna, sentindo a dor antiga nas juntas, e tento lembrar da última
vez que vi minha mãe. Ou minhas irmãs. A memória é falha, borrada pelas imagens
da fuga: meus pés descalços correndo sobre raízes, o som dos faeri me
caçando, as runas queimando no ar, o cheiro de folha molhada e sangue.
Fui
arrancada da floresta como se nunca tivesse pertencido a ela. E mesmo que eu
voltasse… voltaria pra onde? Estava longe o suficiente de casa no dia que me
capturaram e jamais poderia arriscar voltar só para colocar minha família, de
sangue puro, em risco por abrigar alguém como eu. Uma mestiça.
Passei
toda a minha vida escondendo a verdade bem debaixo do nariz de todo mundo. As
vezes, até me esquecia eu mesma de que não era como minhas irmãs – lindas,
graciosas, imortais. A medida que os anos passavam, o peso de ser diferente era
cada vez mais avassalador.
Fecho
os olhos.
Pela
primeira vez desde que cheguei aqui, sinto algo diferente do medo.
Sinto... falta.
Falta de alguém chamar meu nome com ternura; de ouvir minha mãe cantarolar
enquanto penteava meus cabelos; das pequenas mãos das minhas irmãs segurando as
minhas quando o mundo parecia grande demais.
O
broto de flor que trouxe do jardim ainda está comigo. Coloco-a sobre a
prateleira, ao lado de um dos frascos. Suas pétalas ainda estão firmes. A cor,
viva. Um pequeno milagre.
As
vezes, a ignorância é mesmo uma benção.